Romaria à Santa Cruz dos Milagres
Santa Cruz dos Milagres é destes lugares que apresenta ao romeiro piedoso todo este clima de espiritualidade e transcendência, ainda mais porque, sendo um Santuário de condições tão modestas quanto as da grande maioria de seus romeiros, exige já por si mesmo um nivelamento maior com irmãos mais podres, e uma aceitação penitencial de acomodações menos cômodas. Atingindo o comodismo natural das pessoas, leva o romeiro a conscientizar-se mais dos valores definitivos da vida. A Santa Cruz dos Milagres pode dizer-se que não existe ninguém em toda esta vasta região que nunca tenha ido lá. Muita gente vai visitar a Santa, e hoje muito mais, há um começo de turismo: pessoas que vão conhecer a Santa ou a festa.
Mas a Romaria propriamente dita é uma atitude especifica, feita quase sempre fora da festa, para pedir ou agradecer os dons de Deus. Quase sempre é feita a pé, pelo menos na ida, podendo tomar transporte para voltar. Quantas vezes tenho encontrado famílias inteiras com crianças e pessoas idosas a pé nas estradas de Santa Cruz, cansados, empoeirados e afogueados do sol. Mas é “promessa”. De forma alguma aceitam carona, nem mesmo para as crianças. De qualquer forma a caminhada a pé mão se dispensa, mesmo que seja dando várias voltas ao redor da igreja, chegando por fim até aos pés da SANTA. Muita gente faz isto de joelhos.
Na chegada ao Santuário existe um “quase ritual” seguido de modo costumeiro por todos começa pelo Cruzeiro frente à Igreja, para acender velas, deixar o seu “milagre” e até cortar os cabelos conforme a promessa. Vai depois ao altar da Santa rezar, beijar e tocar na imagem, passa pelo cofre deixando ali sua “esmola” e vai ao Olho D’Água tomar banho, levando depois para casa um pouco daquela água. Somente depois disto o romeiro se sente liberado para procurar o “rancho” ou voltar para casa.
Em torno desta “Romaria”, o próprio povo vai criando “obrigações” e “maneiras de fazer” que com o tempo adquirem também uma certa aura de sacralidade. O romeiro pode ser castigado se quebrar estas normas. Não podia, por exemplo, voltar da festa antes da procissão. Uma família de cinco pessoas, o marido, a mulher e três crianças, uma delas de colo, precisou voltar a pé assim antes da procissão. No caminho por quase uma hora, foram ameaçados por uma onça.
Aquele homem mesmo me contou que a fera os acompanhava por dentro do mato rugindo e ameaçando agredi-los a qualquer momento. Eles não podiam correr, o que não adiantava, nem subir em alguma árvore por causa das crianças. E mais incrível, em uma estrada em que neste dia passavam carros a todo momento para a festa. Não passou nada enquanto a onça os ameaçava. Estas obrigações foram caindo aos poucos com o tempo, pela dificuldade de demorar-se mais tempo na festa, e pela exigência dos transportes, tudo contratado e com hora acertada.
A procissão era feita no dia 14 de setembro, dia da festa, começando cedo da tarde. De uns anos para cá, em razão mesmo da inconveniência da hora, foi antecipada para o dia 13 à noite, em maravilhoso espetáculo de luzes. À tarde deste dia lava-se a Imagem para o centro da cidade, começando dali à noite, a Procissão para o Santuário. Esta “descida da Santa”, antes feita de modo simples com poucas pessoas, já se tornou uma caminhada com enorme quantidade de gente. É que agora também “vale” como procissão para aqueles que têm de voltar mais cedo. De qualquer modo um grande número de caminhões, ônibus e carros menores aguardam o final da Procissão no alto da Igreja, já todos lotados. E aí começa a grande caminhada, quando talvez metade dos romeiros voltam para casa.
Olhando com simpatia, e também com um pouquinho de fé, é bonito ver como este povo vai criando espontaneamente o seu próprio modo de ser e de fazer as coisas. No terreno religioso vai “ritualizando” os seus gestos, e vai lhes dando sentido e interpretação, de modo a cobrir suas necessidades espirituais, assim também prestando a Deus e aos Santos o seu serviço de louvor.
A modernização dos costumes, a televisão, as estradas e os transportes, tudo isso vai mudando a feição da romaria. Mas fica sempre subjacente um lastro de conceitos, crenças e atitudes que podem às vezes disfarçar-se, mas permanecem sempre.